O Efeito Devolutivo da Apelação e a Multiplicidade de Fundamentos do Pedido ou da Defesa

Luiz Fernando Valladão Nogueira

1 . Relevante tema processual, que pode sugerir algumas discussões, está centrado na situação em que o juiz acolhe um só fundamento invocado por determinada parte, olvidando outros tantos também agitados, sendo que o Tribunal, em face de apelação da parte derrotada, rejeita aquele que foi acolhido em 1º grau.
A dúvida estaria em torno da obrigação, ou não, do Tribunal, em face do efeito devolutivo, em conhecer de todos os demais fundamentos da parte vitoriosa em 1º grau, além daquele, expressamente, acolhido pela sentença e por ele rejeitado.
Deveria o Tribunal, num quadro como este, percebendo o erro da sentença na acolhida do fundamento, dar provimento ao apelo, já de imediato ? Ou, deveria o Tribunal, percebendo o erro da sentença, superar o fundamento por ela abraçado, e incursionar nos demais fundamentos também invocados, podendo nesta análise, inclusive, manter a decisão do juiz de 1º grau ?
2 . O ponto de partida, na busca de uma solução, está no par. 2o do art. 515 CPC, para o qual “quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais”.
Então, havendo, ou não, abordagem expressa dos demais fundamentos pela sentença, a leitura deste dispositivo estaria a indicar a automática devolução dos mesmos ao Tribunal.
Acontece que um imediato liame entre o parágrafo e o caput, por força mesmo de uma interpretação sistemática, poderia exigir, também, que a parte devesse requerer, expressamente, o exame dos demais fundamentos. É o tantum devolutum quantum appellatum, contido no caput, art. 515 CPC.
Mas, fica a pergunta: requerer de qual forma, se a parte, em 1ª instância, se fez vencedora ?
De fato, a interpretação de uma norma legal, já que se falou alhures em interpretação sistemática, reclama uma análise global do contexto em que ela está inserida.
Ora, em assim sendo, deve-se evocar o art. 511 CPC, o qual fixa o interesse recursal, referindo-se à “parte vencida”, ou seja, aquela que sucumbiu. E, é óbvio, a sucumbência não se aquilata pelos fundamentos acolhidos pela sentença, mas pela rejeição ou acolhimento do pleito. É o dispositivo contido na decisão do Juiz (art. 458 III CPC), objetivamente falando, que ditará se determinada parte foi sucumbente, e se, por conseguinte, tem algum interesse recursal.
Nesta linha de raciocínio, colhe-se de Theotônio Negrão as seguintes anotações, escudadas em valiosos precedentes jurisprudenciais: “Só a sucumbência na ação é que justifica o recurso, não a diversidade dos fundamentos pelos quais foi essa mesma ação acolhida (RP 22/235). Daí, não ter interesse em recorrer quem ganhou a ação por um fundamento, visando a que os outros também sejam acolhidos (art. 515 par. 2º; neste sentido: RSTJ 83/71, RTFR 113/39, 114/10, 120/135, JTJ 157/165, 158/143, JTA 97/207, 108/39, 108/323). Assim: “Ao litigante que obteve tudo quanto poderia obter não será dado recorrer, por falta de interesse. Entretanto, não se reformará decisão, cuja conclusão é correta, apenas porque acolhido fundamento errado” (RSTJ 34/423)” (Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, 30ª ed., p. 497).
Destarte, se, num caso em que a parte logra êxito, com a acolhida de um fundamento invocado, não lhe cabe recorrer para se precaver quanto a outro fundamento afastado ou ignorado pelo juiz, porque, fatalmente, seu recurso não será conhecido. Faltar-lhe-á, indiscutivelmente, interesse em recorrer.
Exsurge daí que o par. 2o art. 515 CPC, na verdade, e numa interpretação lógica, não está vinculado ao tantum devolutum quantum appellatum.
E, aliás, nem se diga que a parte está obrigada a invocar o fundamento preterido, em suas contra-razões de apelação. É que, sabidamente, as contra-razões não são instrumento de ataque a ato judicial, senão mero meio de a parte vencedora exercitar a dialética processual, contrariando o apelo daquele que foi vencedor e pugnando pela manutenção da sentença. O recorrido, se quiser e por cautela, até pode invocar aquele fundamento não analisado ou rejeitado pela sentença, mas a tanto não está obrigado, seja porque as contra-razões não fixam o efeito devolutivo de um recurso, seja porque o art. 515 par. 2º CPCdispensa tal atitude.
Sim, e agora para arrematar, é necessário dizer que o art. 515 par. 2o CPC, traduz norma cogente, no sentido de que a apelação da parte que sucumbiu devolverá ao Tribunal o conhecimento de todos os fundamentos invocados pela parte vencedora, que não dispõe de interesse recursal.
3 . Na lição do prestigiado Humberto Theodoro Jr., encontra-se o seguinte: “0 par. 2o. do art. 515 cuida do caso de multiplicidade de fundamentos para o pedido. 0 juiz acolheu apenas um e deu pela procedência da ação. Impugnada a sentença em apelação, o Tribunal pode reconhecer a procedência do apelo quanto ao fundamento da sentença, mas deixar de dar-lhe provimento porque a matéria não acolhida pelo juiz de primeiro grau se apresenta suficiente para assegurar a procedência da ação. 0 mesmo pode acontecer; também, com a defesa, quando se fundamenta em razões múltiplas e seja acolhida em face de apenas uma delas”.
Diz o ilustre processualista, ainda, que: “Note-se que, por força do efeito devolutivo do apelação, não se faz necessário o recurso adesivo para que o Tribunal aprecie as questões de fato e de direito tratadas no processo. Mesmo porque, não havendo sucumbência, a parte interessada não poderia interpor o recurso adesivo. Até mesmo o silêncio do recorrido não impede que o Tribunal reexamine toda a matéria cujo conhecimento lhe foi devolvido pela apelação” (Curso de Direito Processual Civil, 3a. ed., p.614).
De igual forma, leciona Barbosa Moreira, para quem: “Se o réu opusera duas defesas, e o juiz julgou improcedente o pedido, acolhendo uma única dentre elas, a apelação do autor devolve ao órgão ad quem o conhecimento de ambas: o pedido poderá ser julgado improcedente, no julgamento da apelação, com base na defesa que o órgão a quo repelira, ou sobre a qual não se manifestara. Se o juiz julgou procedente o pedido, rejeitando a defesa A e omitindo-se quanto à defesa B, a apelação do réu permite ao Tribunal, sendo o caso, julgar improcedente o pedido, com apoio seja em A, seja em B”.
E, adiante, sentencia o preclaro doutrinador: “Em nenhuma dessas hipóteses precisa a parte vencedora interpor, por sua vez, apelação, quer independente, quer “adesiva”, para insistir no fundamento do pedido ou da defesa que tenha sido rejeitado, ou a cujo respeito haja silenciado a sentença” (Comentários ao Código de Processo Civil, V/348).
Vê-se, pois, que a doutrina abraça o raciocínio, ora desenvolvido, no sentido de que a devolução dos fundamentos relegados pelo juiz dá-se, independente de descabida provocação recursal daquele que foi vitorioso na causa.
4 . A posição jurisprudencial, notadamente do Superior Tribunal de Justiça, também não discrepa.
Assim é que, em aresto da relatoria do sempre brilhante Ministro Ruy Rosado de Aguiar, restou preconizado que, “tendo a sentença rejeitado a preliminar de carência de ação, acolhendo a defesa de mérito oferecida pelo réu e assim concluindo pela improcedência do pedido, o apelo do autor devolve ao Tribunal ad quem o conhecimento inclusive do fundamento repelido. Desnecessidade, e mesmo inviabilidade de o réu, vencedor na demanda, interpor recurso de apelação, para fazer prevalecer uma das suas teses, recusadas ou não apreciadas na sentença” (Resp 55.361-0-RJ, DJU 29.05.95).
Já no julgamento do Resp 9.906 RJ, relatado pelo prestigiado Ministro Eduardo Ribeiro, foi dito que “julgada improcedente a ação, ainda que rejeitado um dos fundamentos da defesa, pode este ser examinado, ao apreciar-se a apelação, sem que deva o vencedor recorrer – CPC, art. 515 par. 2º” (RSTJ 30/433).
No julgamento do Resp 136.550/MG, relatado pelo digno Ministro César Asfor Rocha, a Corte renovou o entendimento de que “o efeito devolutivo da apelação não se restringe às questões resolvidas na sentença, compreendendo também as que poderiam ter sido decididas, seja porque suscitadas pelas partes, seja porque conhecíveis de ofício (par. 2º , do art. 515/CPC)”. Ainda este mesmo aresto: “Se o juízo de primeiro grau examina apenas um dos dois fundamentos do pedido do autor para acolhê-lo, a apelação do réu devolve ao tribunal o conhecimento de ambos os fundamentos, ainda que o autor não tenha apresentado apelação adesiva ou contra-razões ao apelo do réu, daí porque pode o Tribunal, estando a lide em condições de ser apreciada, reformar a sentença e acolher o pedido do autor pelo outro fundamento que o juiz de 1º grau não chegou a apreciar” (DJU 08.03.00).
Peremptório é o acórdão, dado em face do Resp 172.266 MG, e relatado pelo culto Ministro Aldir Passarinho Júnior, segundo o qual, “afastada, em 1ª instância, a preliminar alusiva à imprestabilidade do contrato de abertura de crédito em conta corrente como título executivo, o acolhimento, na mesma sentença, do outro argumento dos devedores, para julgar procedente os embargos, não impede que o Tribunal de 2º grau, no exame da apelação da parte adversa – exequente – , em reformando a conclusão da decisão singular sobre o segundo tema, enfrente aquele primeiro, que fora por ela afastado, independentemente de não ter sido objeto de discussão tanto no recurso do credor, como nas contra-razões a ele opostas” (DJU 08.10.01).
Enfim, agora na dicção do nobre Ministro Vicente Leal, “se o recurso de apelação devolve ao Tribunal o conhecimento de todos os fundamentos do pedido, na hipótese da sentença que, acolhendo um dos argumentos da petição inicial, julgou procedentes os embargos do devedor, a amplitude do efeito devolutivo, frente ao provimento da apelação para julgar improcedentes os embargos, implica a análise pelo Tribunal a quo dos demais argumentos apresentados na petição inicial dos embargos, sob pena de infringência da norma inserta no par. 2o do art. 515, do CPC” (Resp 232.116-SP, DJU 15.10.01).
Assim sendo, denota-se que a Corte, cujo papel institucional é uniformizar a jurisprudência pátria, já tem entendimento pacificado sobre o tema processual aqui abordado.
5 . Em sede de conclusão, cabe-nos dizer que a parte que invocou múltipla fundamentação, não só está dispensada de recorrer da sentença que lhe foi favorável e que acolheu um só fundamento, como, na verdade, sequer, possui o pressuposto do interesse recursal. Se quiser, e é bastante cauteloso de sua parte, pode abordar o fundamento preterido, em sede de contra-razões, mas a tanto, também, não está obrigada.
O que é certo é que o efeito devolutivo da apelação da parte sucumbente, não só afasta eventual argumentação de coisa julgada ou preclusão, em torno daquele fundamento repelido pelo juiz e invocado pela parte vitoriosa, como impõe sua apreciação pelo Tribunal.
Esta, ao nosso ver, a melhor exegese sobre o assunto aqui abordado.