Criminalidade nas Relações com a Administração Pública

Luiz Fernando Valladão Nogueira

1. Considerações Iniciais
A Administração Pública, em seus diversos ramos de atuação, precisa estabelecer contratos com empresas do setor privado. Com efeito, é impossível que a Administração alcance os seus objetivos, voltados ao atendimento dos cidadãos, sem valer-se dos préstimos de particulares.
Neste cenário, pode-se dizer que o particular vê-se na contingência de firmar Contratos Administrativos, os quais são regidos por princípios rígidos.
Assim é que tais contratos não podem destoar dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37 CF). Exemplos concretos de aplicação destes princípios estão inseridos no próprio texto constitucional, como é o caso da exigência de que a investidura em cargo ou emprego público dê-se por meio de aprovação em concurso público (inc. II art. 37 CF), ou como é a hipótese de exigência de licitação para a contratação de obras, serviços, compras e alienações pela Administração Pública (inc. XXI art. 37 CF).
Volvendo ao Contrato Administrativo, deve-se lembrar de sua conceituação:
“Pode-se conceituar o contrato administrativo como o ajuste firmado entre a Administração Pública e um particular, regulado basicamente pelo direito público, e tendo por objeto uma atividade que, de alguma forma, traduza interesse público”. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. “Manual de Direito Administrativo”, Lumens Juris, Ed. 14° RJ, 2005 – pg. 148).
“O contrato administrativo é o ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma com particular ou outra entidade administrativa para a consecução de objetivos de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração”. (MEIRELLES, Hely Lopes. “Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros Editores. Ed 17º SP, 1990 – pgs. 194/195).
2. O Particular e alguns Tipos Penais
O objeto deste estudo está centrado, exatamente, nas situações em que o particular, notadamente o empresário, vê-se envolvido em tais contratações e acaba por incorrer em algum tipo penal.
O que acontece é que as normas infraconstitucionais, atentas aos princípios antes lembrados, penalizam o Administrador Público que deles desvia. Porém, em determinadas situações, tais normas alcançam o particular.
Por exemplo, pode-se citar o art. 89 da Lei 8666/93, o qual incrimina a dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses legais. No par. único do referido dispositivo, vê-se que “na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público”.
Aliás, a lei de licitações, em outros dispositivos penais que se seguem, prevê o apenamento do terceiro contratante.
3. A Boa-Fé do Particular
Ante os rígidos princípios já enunciados, torna-se necessária a cautela do particular em suas contratações com a Administração Pública.
De fato, podem ocorrer desvios de conduta praticados pelo próprio ADMINISTRADOR, mas que não tiveram a contribuição do terceiro contratado. E, em casos tais, não se pode admitir a condenação do terceiro sem que haja a presença do elemento subjetivo, em especial o dolo.
Este rigor tem sido observado, nos casos em que o administrador é acionado. Com efeito, já decidiu o eg. TJMG, em acórdão relatado pelo eminente Desemb. Paulo Cézar Dias, que “os delitos previstos no art. 1.º do Decreto-Lei 201/67 somente se configuram mediante demonstração do dolo. O dolo constitui elemento implícito do tipo penal, e, quando inexistente na conduta do agente, importa improcedência do pleito condenatório por não-realização do fato típico” (Des. Rel. Paulo César Diaz, publicado em 29/11/2007, nº 1.0049.05.009771-3/001(1) – TJMG).
Ora, outro não pode ser o critério com relação ao terceiro contratante. Sim, também em precedente do TJMG, agora da relatoria do douto Desemb. Eduardo Brum, decidiu-se que “não havendo provas de que o terceiro beneficiado tenha concorrido para a consumação da ilegalidade na dispensa da licitação, deve ele ser absolvido” (Des. Rel. Eduardo Brum, publicado em 24/04/2007, nº 1.0107.06.976460-6/001(1) – TJMG).
Convenhamos que, se o terceiro é contratado conforme critérios adotados pela Administração Pública, ainda que ilegais, não pode ser apenado criminalmente, se não agiu de má-fé. O conhecimento profundo das normas a respeito do tema deve-se exigir da própria Administração, donde que, se esta firmou o contrato convicta de sua legalidade, não se pode exigir conduta mais rigorosa do terceiro, o qual é leigo, a rigor, em assuntos desta natureza.
Neste diapasão, há acórdão relatado pelo culto Desemb. José Antonino Baía Borges que bem ilustra a tese, ora sustentada:
PREFEITO MUNICIPAL – DENÚNCIA – DEFESA PRELIMINAR – DEMONSTRAÇÃO CABAL DA INEXISTÊNCIA DA PRÁTICA DE INFRAÇÃO PENAL – REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. Se o Prefeito Municipal autoriza a contratação, com dispensa de licitação, de sociedade civil com base em vastas informações e inúmeros documentos que evidenciam preencher a empresa os requisitos legais para a contração direta, e se tudo está a evidenciar a sua boa-fé, não se pode falar em existência de dolo e, por conseguinte, em prática de crime. (Des. Rel. José Antonine Baía Borges, publicado em 12/11/2004, nº 1.0000.03.403309-2/000(1) – TJMG).
Evidenciando a boa-fé do terceiro, o STJ assim já decidiu:
“CRIMINAL. PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. JULGAMENTO DAS CONTAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS. REGULARIDADE. ELEMENTO SUBJETIVO. DENÚNCIA. REJEIÇÃO.
1 – O entendimento pretoriano é no sentido de que a falta de observância das formalidades à dispensa ou à inexigibilidade do procedimento licitatório de que trata o art. 89 da Lei 8.666/93, apenas será punível “quando acarretar contratação indevida e retratar o intento reprovável do agente”. “Se os pressupostos da contratação direta estavam presentes, mas o agente deixou de atender à formalidade legal, a conduta é penalmente irrelevante”. 2 – O julgamento pelo Tribunal de Contas, atestando a regularidade do procedimento do administrador, em relação ao orçamento da entidade por ele dirigida, ou seja, a adequação à lei das contas prestadas, sob o exclusivo prisma do art. 89 da Lei 8.666, é, em princípio, excludente da justa causa para a ação penal, quando nada pela ausência do elemento mínimo da culpabilidade que viabiliza seja alguém submetido a um processo criminal, dada a falta de probabilidade ainda que potencial de uma condenação. Somente a intenção dolosa tem relevância para efeito de punição. O dolo no caso é genérico, mas uma consciência jurídica mais apurada não pode e nem deve reconhecer, quando da dispensa da licitação, como no caso, movida pelo justificado açodamento na conclusão e inauguração das obras, motivação ilegítima que a acusação não aponta e cifrada em vantagem pecuniária ou funcional imprópria. 3 – Denúncia rejeitada.” (Ministro Fernando Gonçalves, publicado em 13/02/2006, Apn 323 / CE AÇÃO PENAL 2002/0047794-9 – STJ)
Portanto, o norte a ser seguido pela doutrina e jurisprudência haverá de ser, sempre, a boa-fé do contratado, circunstância que, como é natural, deve ser presumida.
4. O Dolo na Configuração do Crime
Por outro lado, não se pode deixar de analisar o disposto no parágrafo único do art. 18 do Código Penal que prevê:
“Art. 18. Diz-se o crime:
(…)
PARÁGRAFO ÚNICO. SALVO OS CASOS EXPRESSOS EM LEI, NINGUÉM PODE SER PUNIDO POR FATO PREVISTO COMO CRIME, SENÃO QUANDO O PRATICA DOLOSAMENTE”.
Para a configuração de qualquer ilícito, inclusive contra a Administração, faz-se necessária a identificação do dolo ou da culpa, consubstanciado na intenção de auferir vantagem ou lesar o erário.
Admitir a consumação de crime, sem a comprovação do elemento subjetivo, seria o mesmo que introduzir a hipótese de responsabilidade objetiva no processo penal, o que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Assim, nos casos em que haja a contratação do particular pela Administração, mesmo ocorrendo alguma ilegalidade por parte da Administração, o particular apenas poderá ser criminalmente responsabilizado se tiver agido com dolo, visando auferir vantagens ou lesar o erário.
Como exemplo, frise-se que, em sede doutrinária, Marçal Justen Filho é categórico ao defender a irreprovabilidade do tipo penal do art. 89 da Lei de Licitações, diante da ausência de dolo. Note-se:
“No tocante ao crime do caput, não parece viável exigir apenas o dolo genérico. Se a vontade consciente e livre de praticar a conduta descrita no tipo fosse suficiente para concretizar o crime, então teria de admitir-se a modalidade culposa. Ou seja, quando a conduta descrita no dispositivo fosse concretizada em virtude de negligência, teria de haver a punição. Isso seria banalizar o direito penal e produzir criminalização de condutas que não se revestem de reprovabilidade. É IMPERIOSO, PARA A CARACTERIZAÇÃO DO CRIME, QUE O AGENTE ATUE VOLTADO A OBTER UM OUTRO RESULTADO, EFETIVAMENTE REPROVÁVEL E GRAVE, ALÉM DA MERA CONTRATAÇÃO DIRETA” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 9a. ed., p. 579, destacamos).
Saliente-se que a jurisprudência do eg. STJ é no sentido da necessidade da comprovação do dolo nos casos em comento, como o exemplo do art. 89. Observe-se:
“Além disso, o fato típico previsto no art. 89 da Lei 8.666/93 exige dolo do agente em dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixar de observar as formalidades pertinentes à sua dispensa ou inexigibilidade, ou ainda, que, concorrendo para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, nos termos seguintes:” (STJ – HC 153.097, Rel: Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, Pub: DJe 10/05/2010)
Desta forma, resta incontroverso que o particular não poderá ser penalizado por eventual ilegalidade em sua contratação, ao menos que tenha agido com dolo, objetivando auferir vantagens.
5. Conclusão
Constata-se, pois, que a Administração Pública necessita estabelecer contratos com empresas do setor privado.
Por sua vez, nessas negociações presume-se a boa-fé, especialmente no que concerne aos particulares.
Isso porque, diante de eventual vantagem auferida em prejuízo do erário, apenas o dolo do particular pode configurar os crimes previstos na legislação especial.
Desta forma, conclui-se que, ausente a figura do dolo, não há crime praticado pelo terceiro que contrata com a Administração.
Artigo publicado na Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais – Atividade Empresarial e sua Legalidade -Nº Especial 2011 – Belo Horizonte-MG